TEXTOS

AS DUAS MORTES DO COMENDADOR
Poucos lugares tão simples conferem tanta importância e solenidade aos seus usuários quanto uma sala reservada em uma ala de hospital.
Numa dessas salas, decorada com um quadro de santa, no hospital que leva o nome da família, o profundo silêncio foi quebrado pelo comunicado que o Comendador, dado como morto há dez minutos, na verdade, estava vivo.
– Ai meu Deus! – foi a expressão que se ouviu com mais clareza na maré entrante de vozes que tomou conta do ambiente.
Quando a maré ficou vazante e a enfermeira predileta do Comendador já tinha sido incriminada e a junta médica estava a caminho, alguém perguntou:
– Como assim, “ai meu Deus”?
– Liberei o anúncio fúnebre para todos os jornais, pedi para as rádios locais interromperem a programação para o anúncio, autorizei coroas de flores e a Prefeitura já deve ter colocado a bandeira a meio-mastro. Isso sem falar nas listas de distribuição do WhatsApp – respondeu a ruiva, neta mais velha.
– Nossa Senhora! – gemeu tia Arcilda, irmã do vivo.
Mais dez minutos e passos firmes e cadenciados denunciam a chegada da junta médica.
– Lamentamos informar que o Comendador, apesar de todos nossos esforços, veio a falecer.
– Graças a Deus! – foi dito entre dentes e abafado, mas é o que foi ouvido.


DUNGA
Dunga foi meu primeiro cão.
Digo assim, cão. Não lembro se Dunga era macho ou fêmea e isso não tem nenhuma importância.
O importante é que Dunga sorria sempre que me via, lembro disso.
Lembro também que Dunga abanava o rabo e saltitava, lembro de seu cheiro, lembro que me fazia companhia e quando eu estava triste tinha o mais doce jeito de olhar.
Não lembro como Dunga saiu da minha vida.
Acho que nunca saiu.


PROIBIDO PISAR NA GRAMA
Em frente à casa onde eu morava tinha uma praça.
A Praça Pinheiro Machado fica na frente da casa onde passei minha infância e esse é seu nome, Praça Pinheiro Machado.
A praça tinha uma área cercada com instalações esportivas e, se bem me lembro, um depósito para materiais de manutenção, uma área externa com gramados e um colégio público. Tinha também um monumento dedicado a alguma data cívica e uma placa de bronze dizendo, temeroso respeito de todos nós, “PROIBIDO PISAR NA GRAMA”.
Adotei, faz tempo, o tempo como aliado – eu e ele enfrentamos quaisquer outros dois.
Fazia tempo que não visitava a Praça Pinheiro Machado: vandalizaram tudo, roubaram a placa de bronze e mataram a grama.
Mandei fazer uma placa nova: “PROIBIDO PISAR NA ESPERANÇA”.
Eu e o tempo ainda voltaremos na Praça Pinheiro Machado.